quinta-feira, 30 de julho de 2009

LITERATURA: HISTÓRIA E CONCEPÇÕES

AUTORA: Maria Aparecida Ventura Brandão


A história da literatura vem, em nossa época, se fazendo cada vez mais mal-falada – e, aliás, não de forma imerecida. ( Jauss,1994.)




Este artigo é parte de um estudo acerca da formação do leitor pela literatura, focalizando, sobretudo, a figura do professor leitor, trazendo, portanto, como propósito contribuir com sua prática docente. Com efeito, nesse bloco de exposições nos voltaremos especificamente para uma reflexão em recortes sobre o campo conceitual da literatura. Por constatarmos que a compreensão acerca do que vem a ser literatura tem imbricado em fator de complexidade, tanto nos meios acadêmicos quanto em rodas de discussão na formação continuada de professores envolvidos com a questão, colocamos, nestas rápidas considerações, alguns pontos para reflexão.


A tarefa de conceituar literatura não é das mais cômodas e fáceis. A pergunta “o que é literatura” pode deixar em embaraços tanto pessoas que não lidam com o complexo campo da ciência literária, quanto aquelas dedicadas à questão, como leitores, especialistas ou docentes submetidos à discussão. No entanto, algumas acepções são possíveis se concebidas à luz dos múltiplos olhares lançados historicamente sobre a palavra literatura e seu campo de atuação desde seu aparecimento na cultura socialmente produzida pela humanidade. Lajolo (2001, p.11) ao estudar a respeito da questão chega a nos deixar menos preocupados com a extensão ou formulação de tão questionável conceito:

Aquém e além dos que resmungam, uma multidão de gente, você, eu, todos nós, sócios entusiasmados do clube dos leitores anônimos, eventualmente já nos perguntamos e já nos respondemos o que é literatura? Perguntas permanentes, respostas provisórias. Tão permanentes umas e provisórias outras quanto o são as perguntas e respostas com que lidam os intelectuais do time dos que reclamam e resmungam. Só que sem o reflexo do espelho, das citações, dos interlocutores.

Inicialmente, o termo literatura servia como expressão ampla para designar qualquer conjunto de textos relacionados às produções das ciências em geral, assim é que tínhamos : a literatura jurídica, a literatura médica , a literatura jesuítica, a literatura científica, a literatura jornalística entre muitas outras, empregadas nos diferentes campos do conhecimento humano. Kupstas e Campos (1988, p. 29) salientam que o trabalho com as palavras representa sempre o que chamamos de literatura. “Literatura vem de “littera”, que em grego origina “palavra” e “letra”. Por essa concepção, o que aqui passa a ser considerado literário é todo e qualquer material escrito.

As várias conceituações designadas pelos diferentes campos da ciência não vão encontrar de forma efetiva um único sentido para o termo literatura, contudo, possibilita, no âmbito da estética textual em seu conjunto de produções, variações que são assimiladas pela idéia ou campo da arte como fenômeno estético, arte da palavra, transfiguração do real, conjunto das ricas obras de um povo- são definições que vão dando consistência ao movimento do conceito à medida em que as teorias vão sendo elaboradas, reelaboradas e aceitas. Isso se dá de acordo com o processo de transformação vivido em cada nova etapa da construção do conhecimento humano.

Em seu ensaio Histórias da literatura e sua história, Abreu (2000), percorre caminhos que se cruzam na perspectiva de esclarecer a história da literatura a partir do pensamento de Olinto, Voltaire, Bluteau e Machado, vislumbrando com isso uma reflexão apriori destinada ao desvelamento de problemas presentes na arena literária, que envolvem níveis de complexidade partilhados entre os que apostam na linearidade do historicismo e nos profissionais mais reflexivos que vislumbram acolher em suas práticas os valores prescritos pelos caminhos da historicidade.

Nesse estudo, a autora destaca as fronteiras que giram em torno da abordagem conceitual da literatura e a segmentação de seus períodos, acentuando em seu discurso que não se trata de problemas novos, mas de situações há muito discutidas ou problematizadas por historiadores da literatura enredados com elas desde o surgimento da tradicional historiografia literária.

Desvelando o pensamento de Olinto, a referida análise pontua todo um processo desestabilizado quando se trata da precisão de estabelecer conceitos sobre o objeto numa época em que a multiplicidade de produtos culturais ampliam-se extraordinariamente, gerando, assim, dificuldades em efetuar definições e conceitos de época e periodizações estáveis, tendo em vista as novas concepções de história, mundo, homem e sociedade.

Revisitando Voltaire no século XVIII, a autora descortina os valores defendidos pelo filósofo, quando construiu uma representação da literatura como um nome que designava o conhecimento de um conjunto de amplos saberes ou seja, história, poesia, eloqüência, crítica, equivalendo aos limites da erudição.

Em Bluteau, Abreu (2000) encontra o mesmo posicionamento : “erudição, sciencia, notícia das boas letras – acepção que se estende até o final do século XIX. Na concepção de Bluteau, o estudo identifica um significativo acréscimo em relação a construção da atividade literária como forma de conhecimento e a vinculação do termo literatura a um conjunto de obras, ainda não reunidas por afinidades estéticas ou formais, mas sobretudo por sua natureza de produção territorial e temporal, resultante em movimento, contudo, a definição continuava vaga e ampla.

Acompanhando os estudos de Barbosa Machado, autor da Biblioteca Lusitana, Abreu (2000) põe para reflexão o pensamento do mencionado autor e defensor da idéia de que “o melhor trabalho literário é aquele que compila, apontando que a biblioteca é, por excelência, a grande produtora literária”. Seu trabalho baseou-se fundamentalmente em sua época no agrupamento dos impressos em categorias específicas, tais como : retórica, oratória, poética, filosofia e história. Grosso modo, podemos concluir que, na Biblioteca Lusitana, não despontou nenhum estudo de maior impacto ou mesmo uma reflexão mais apropriada sobre a construção de uma base conceitual para a literatura. Segundo Abreu (2000), o autor da Biblioteca Lusitana ancora seu trabalho nos pilares de uma tradição reconhecida que apenas interfere de forma equivocada e confusa, dados os critérios de classificação e organização das produções em geral.

Todas essas tentativas de conceituar a literatura não foram em vão tendo em vista que o momento de suas constituições eram momentos voltados para a história, até aí compreendida como a história dos costumes, das legislações, dos homens ilustres, da religião, etc.

Lentamente o conceito de literatura vai se tornando específico das composições estéticas, a exemplo da poesia concebida como uma modalidade lingüística privilegiada pela própria forma, conteúdo, aprimoramento, seleção e refinamento vocabular.

O movimento da história passa a ser incluído e absorvido pela literatura durante sucessivos séculos de produções escritas sem, no entanto, proporcionar preocupação de tornar específico o agrupamento das obras segundo caracteres próprios do fazer artístico como percebem alguns teóricos com o passar do tempo, ainda por meio de um processo de indefinições e imprecisões dada a forma como, de inicio, foi compreendida.

Questionada desde a antiguidade clássica, quando Platão introduz a idéia de mimese / imitação da realidade, ou em outras palavras cópia da cópia, concebe-se por meio dessa acepção um caráter não-utilitário e não-necessário, idéia latente extensiva à literatura e posta em sua República ideal. Platão assim confere à palavra mimese uma importância capital por compreendê-la e aplicá-la como determinado tipo de produção que nada criava, mas apenas decalcava distintamente o que seria a verdadeira realidade. O filósofo acerca-se das imagens miméticas como imitação da imitação, pois segundo sua compreensão essas imagens imitavam a própria pessoa e o mundo do autor, os quais, já eram imitação – sombra da realidade original.

Como discípulo de Platão, Aristóteles redimensiona o sentido da palavra mimese a partir da reflexão sobre a autonomia do processo mimético face a verdade e à realidade concebida pela filosofia de seu tempo. Segundo Costa (1992, p. 6)

De ontológica, a arte passa a ter, com ele, uma concepção estética, não significando mais imitação do mundo exterior, mas fornecendo possíveis interpretações do real através de ações, pensamentos e palavras, de experiências existenciais imaginárias.


Ao lado da mimese, agora entendida,como representação ou reconstrução da realidade, o mito e a catarse vão dar um novo formato à teoria literária a respeito da poiésis.

A partir de Aristóteles, novos olhares são lançados para o campo conceitual da literatura. As tentativas de construção de um conceito começam por aí. As idéias lançadas, a partir de então, fomentam e exercem significativas preocupações e margens de influência nos séculos seguintes.

O século XIX anuncia o surgimento de um novo gênero – o romance. Inicialmente destinado ao público burguês, expropriado das leituras dos canonicamente apontados como grandiosas obras (epopéias ), o romance é inaugurado para atender aos gostos e as preferências de um painel de leitores menos exigentes. Foi o período de profissionalização do escritor, que passa a ser concebido como um componente nodal de segmentados estudos e pesquisas sobre o conceito e a história da literatura, contudo, atrelados a contextos marcados ideologicamente por valores estabelecidos na esteira social em que desfilam os séculos e a história. Etimologicamente, a palavra romance origina-se da expressão latina romanice loqui que segundo Onofrio (1995, p. 116) significa:

Falar românico , ou seja, falar num dos vários dialetos europeus que se formaram a partir da língua da antiga Roma, em oposição a latine loqui, que era a língua culta da Idade Média. E porque nesses dialetos populares se contavam histórias de amor e de aventuras cavaleirescas, transmitidas oralmente, a palavra romance passou a indicar uma longa narrativa sentimental, forma cultural que viveu à margem da literatura oficial durante a época do classicismo.

No século XX, o romance estabelece-se como uma categoria bastante consumida em todo o mundo. Por conter conflitos amorosos, políticos, sociais, religiosos e muitos outros, a leitura do romance torna-se uma prática socialmente apreciada num mundo que também já começava a experimentar outros eventos de natureza artística e cultural como o rádio e o cinema e um pouco mais adiante a televisão, o computador e outras formas de comunicação e lazer. Segundo Onofrio (1995, p. 118):

Especialmente no século XX, o romance tornou-se, sem dúvida alguma, a forma artística mais apta a expressar as perplexidades da nossa realidade. Os melhores ficcionistas em prosa da modernidade souberam revestir fábulas e personagens do mais profundo sentido humano, enriquecendo suas histórias imaginárias com a reflexão histórica, o ensaio filosófico, a descoberta científica, o pensamento político, a introspecção psicológica, a revolução ética, a renovação lingüística.

O século XXI representa o prolongamento dessas experiências. Contudo, a presença maciça da televisão do computador e da internet vem alternar novas preferências e gostos. Obras literárias ganham novos suportes. Agora aliados ao mundo do som da imagem, assistimos a chegada de um público leitor mais assíduo pelo processo de sedução de uma forma de ler prazerosa e instigante. O que nos resta fazer? Com certeza não vamos tocar um tango argentino como foi sentenciado a Bandeira. Vamos continuar acreditando no poder que o livro exerce em nossas vidas, focalizando sempre que a leitura da obra deve preceder à leitura das telinhas.

Para tanto, devemos inovar nossa prática como investidores da leitura. Seduzir o aluno para esse mundo, tirando do próprio texto os elementos que são necessários para tornar atrativo o ato de ler. Afinal, o texto é a própria receita - uma receita capaz de fazer delirar, através do sabor produzido em sua degustação, todos os sentidos do leitor.
REFERÊNCIAS
ABREU, Márcia. Histórias da literatura e sua história, 2000. Disponível em
<>. Acesso em 21 set.2003.
COSTA, Lígia Militz da, A poética da Aristóteles – mimese e verossimilhança. São Paulo: Ática, 1992.
D’ ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1 – Prolegômenos e Teoria da Narrativa. São Paulo: Ática, 1995.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Editora Ática, 1994.
LAJOLO Marisa. Literatura: leitores & Leitura. São Paulo: Editora Moderna, 2001.
KUPSTAS, Márcia, & CAMPOS. Literatura, Arte e Cultura. São Paulo: Ática, 1988.

4 comentários:

  1. Maravilhoso!!! Seu blog está riquissimo!!!bjs Vilani

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  2. Olá!

    Que delícia de artigo! Como é maravilhoso passear pelas páginas da História e da Literatura de mãos dadas com uma maestrina da palavra... Cidoca, seu blog está chic porque alia a estética à ética, com muita sabedoria e conhecimento. Posso partilhar seu artigo com nossos colegas do RS? Espero que a sua generosidade nos permita.

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  3. Querida Adelaide,

    As considerações feitas por vc são relevantes para mim, porque indicam que estamos trilhando o mesmo caminho e as mesmas concepções.Quanto a vc fazer uso do texto em tela é motivo de alegria para mim.Fique à vontade!

    bjos

    Cida

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  4. Obrigada Vilani!!Vale ressaltar que o seu Blog também é MARAVILHOSO!!
    bjos
    Cida

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